Sobre ser negra, mulher e pobre no Brasil

Por Cláudia Oliveira*

 

Ponciá Vicêncio é desses romances que colocam o leitor numa espiral de emoções, entre o amar e o adiar, entre o admirar e o raivar, entre o querer que tudo acabe bem (e logo!) e a sensação de que uma história dessas não pode acabar bem.

A narrativa de Conceição Evaristo é uma experiência sensível de leitura. Conhecer Ponciá e caminhar pelos desvãos de suas memórias, pelos caminhos das águas do rio de onde brota o arco-íris-angorô é adentrar o terreno arenoso dos segredos que podem ser adivinhados. Cheiros, cores, texturas, sabores e lembranças se misturam com o tempo presente da narrativa, misturando as lágrimas de Ponciá às do leitor.

Livro de pouco mais de 100 páginas, com parágrafos curtos, formados por períodos simples, em narrativa atemporal e digressiva, entremeando o passado e o presente, tem em sua tessitura, contada por um narrador onisciente. Vicêncio é sobrenome do coronel branco, dono da terra em que vivem os ex-escravos, terra essa que foi transferida por títulos aos libertos, mas que, pelas artimanhas dos brancos e de suas famílias, não estão em poder desses negros e negras; assim, Conceição Evaristo resgata a marca de um passado que nossa história oficial teima em negar; é também o sobrenome-fardo carregado por gerações de ancestrais marcados pela nulidade de suas identidades, diluídas na propriedade, nome inclusive do lugar narrativo – a Vila Vicêncio.

Ponciá Vicêncio é o nome que a menina grita à beira do rio-espelho sem se encontrar porque “era para ela um nome que não tinha dono” (p. 27), inventando outros nomes “Pandá, Malenga, Quieti; nenhum lhe pertencia também” (p. 18). A busca da identidade, que é uma procura constante na vida da personagem, move-a para fora do povoado em que nasceu e Ponciá vai em busca de verdades…

Ambientada em um cenário mineiro, ao descrever a trajetória da menina-moça Ponciá Vicêncio, de 19 anos, vivenciamos as diversas Ponciás brasileiras, ao longo do século XX: sair da casa de pau a pique, chão batido, fogão à lenha, com uma pequena trouxa com roupas e algum alimento. Tomar o trem. Ir para a cidade. O curto trajeto do campo-cidade não deixa entrever o abismo das diferenças sociais brasileiras, mas revela-o um a um: a artesã de mãos hábeis, ao sair de sua rede de proteção entre parentes consanguíneos ou não – também chamados de irmãos -, encontra uma cidade inóspita, uma igreja que a deixa ao relento, em suas escadarias, junto a mendigos e uma sociedade que a determina como empregada doméstica, na casa de alguma família branca que precisa de alguém para lavar, passar, cozinhar e iniciar sexualmente o filho branco. Enredo que se repete com Maria Pia , Moça Biliza, meninas-moças transformadas em mulheres exploradas devido à sua origem socioeconômica, mas, sobretudo,  determinadas por serem mulheres negras. Tais trajetórias são marcadas por dor, roubo, exploração sexual, submissão, humilhação e morte.

Ponciá Vicêncio sai da proteção de seu povoado para tomar o que deveria, de fato, ser seu. Deseja um companheiro, filhos, uma casa, uma vida digna, um lar que verá florir de prosperidade pela força de seu trabalho para, assim, mudar também a realidade do irmão e da mãe. Encontra um homem – sem nome – que lhe espanca por não lhe compreender; perde sete filhos por não ter acesso à saúde de qualidade e alguém que explique o que é seu “sangue ruim”; consegue comprar um barraco na favela, pela janela do qual enxerga um passado feliz, mas não tem forças para voltar.

Paralela à narrativa de Ponciá Vicêncio e sua busca por identidade, também se desenvolvem as narrativas do Vô Vicêncio, do pai não nomeado, de sua mãe, Maria Vicêncio, e seu irmão Luandi Vicêncio.

Vô Vicêncio, ex-escravo liberto com crises que iam do choro ao riso sem razão, provocados pela condição miserável e por nunca ter se tornado livre de fato, sufoca sua esposa até a morte em meio a uma das muitas ausências nervosas, que serão herdadas por Ponciá. O velho escravo é incompreendido e, por vezes, odiado pelo filho, também nascido e criado na roça, sem conhecer outra vida que não a do trabalho na terra. Vô Vicêncio é presença marcante em toda a narrativa, ora na lembrança física de Ponciá Vicêncio, ora em espírito que se faz presente para a moça. A semelhança de comportamento com a menina funciona como  a guarda da memória da família Vicêncio e da sua ancestralidade negra que, de forma alegórica, Conceição Evaristo reconstrói como a busca de construção emocional e psíquica.

O pai de Ponciá também não tem nome. Por esse traço, é evidenciada a característica tão brasileira dos muitos filhos de mães, mas pais desconhecidos, embora a história de Maria Vicêncio seja de um amor harmonioso. Percebe-se que as identidades dos homens negros nascidos livres estão aferradas ao passado de exploração escrava, resultando na semiescravidão moderna, reforçada pelo pavor generalizado sobre o monstro chamado cidade que engole a todos os saídos do povoado.

Luandi Vicêncio, irmão de Ponciá, movido pela coragem da irmã e sob a justificativa de procurá-la na cidade, também abandona o povoado. Os desejos de Luandi vão se desenhando à medida que as oportunidades surgem. O jovem desejará a farda envergada por Soldado Nestor – um preto de farda! – símbolo de poder, de ascensão e reconhecimento que Luandi só compreenderá inútil ao descobrir-se a si mesmo. Desejará um amor que lhe será roubado por outro preto – o cafetão Negro Climério. No cortiço-puteiro, a figura central de Biliza-estrela transita entre os dois homens, um amado, outro que detém a poder de exploração de seu corpo e, entre o amor e a propriedade, vencerá a segunda, reproduzindo em Biliza os inúmeros feminicídios de que temos notícias todos os dias. A dor maior, no entanto, está implícita na rivalidade de seres irmãos em suas origens, que até têm nomes, mas que não conseguem estabelecer laços fraternos dadas as agruras e hierarquias que lhes são impostas por um mundo de convenções e costumes brancos.

Em Maria Vicêncio, a mãe, encontramos a pedra angular da família. Ela deixa os filhos partirem em busca daquilo que pensam ser sonhos, mas quando muito são ilusões vazias para, do alto de sua sabedoria ancestral de mulher espiritualizada, buscar os cacos alquebrados, juntando-os, revigorando-os e trazendo-os de volta à unidade da família negra que, com todas as dificuldades impostas pela estrutura racista brasileira, é o núcleo de força para o qual convergem as histórias narradas.

Este romance, lançado em 2003, pela editora Mazza, e reeditado em 2017 pela Pallas Editora, não é uma leitura de varanda, nem para deleite puro da simples fruição. Ponciá Vicêncio nos obriga a viver sua vida, ver pelos seus olhos, sentir suas dores, viver suas perdas e seus ganhos, ter as suas esperanças, pasmar na janela à espera do passado e Conceição Evaristo aplacará a angústia do leitor pessimista. Uma narrativa de pretos, contada por pretos do ponto de vista da verdadeira História da realidade negra. Com H maiúsculo.

* Cláudia Oliveira é pesquisadora (e amante) das Literaturas africanas de expressão portuguesa, brasileira e afro-brasileira e das relações étnico-raciais no Brasil. É professora da educação básica, dedicando-se à formação de leitores.