ANATOMIA

Daniel Manzoni de Almeida*

 

Ele namorava com um Outro. O Outro o havia abandonado por um Outrem com o corpo melhor. O que restava a Ele era apenas consumir. E consumiu. Passado um tempo, Ele Já não se olhava no espelho, um olhar de corpo inteiro, fazia mais meses.  Quando se olhou não teve assombro, teve constatação: seu corpo havia mudado. Seu corpo, agora, tinha formas antes já não lembradas. Acúmulo de gordura, mal distribuída, “flaciando” a imagem no espelho causada pelos olhos caídos denunciadores de uma idade não certa na cronologia. Aparentava mais idade do que realmente tinha, era isso. Nos últimos tempos havia botado tudo para dentro como comida: a solidão, o abandono, o preconceito que amargava pelo desdém, do Outro, do corpo que tinha. Comia culpa e ela, aproveitou a oportunidade, ganhou forma, corporificou, espichou a pele como uma alavanca de tecido adiposo, acumulando e fazendo pesar o que não era, então, naturalmente seu, mas era sempre de todos que passavam e deixavam. Passavam e deixavam algo em forma de uma crítica, de um xingamento, que apetitosamente materializava-se no objeto mais deliciosamente palatável, fazendo suas papilas gustativas abrirem e fecharem pedindo sabor. Colocava tudo para dentro sem critério em forma de doce à líquido gaseificado. Era acumular culpa em forma de gordura, pesando mais e se machucando. Ele tinha as opções de seguir em frente, depois da decepção, ou paralisar, diante do abandono; preferiu paralisar e ficar carregado, pesado e mais pesado. Em um belo dia a mudança veio em forma de um novo amor. Essa sua nova imagem atraiu um olhar apaixonado de um Outrem. O medo de perder esse amor, por causa da sua nova forma, o fez tomar uma decisão. E ela era, então, perder esses pedaços de si, perder as partes amareladas que residiam embaixo da pele. Não seria, agora, fácil. Tudo tão acumulado, aquilo tudo tão metabolizado, introjetado, encarnado já na alma. Perder tudo pelo novo amor que havia aparecido a Ele. A felicidade havia voltado a bater, e sua exigência interna, como uma fogueira feroz, para agradar sempre o outro, era deixar todo o peso para trás. Exigência tamanha que não conseguia ficar pelado diante do novo amado, apesar do outro gostar. Era como não deixar todo o peso do passado não seguir em frente para o futuro. Para Ele esse peso já não lhe pertencia. O presente, seu presente dentro da sua alma, exigia isso, dizendo “Você vai ser abandonado novamente por causado do formato do seu corpo!”. Mas como amar no presente, sem aquele peso das entranhas, que no mesmo presente fazia quem ele era? Ele havia atraído o novo amor com toda aquela anatomia, “Eu desejo você assim”, diz o novo amor, mas ele pensa “Quero me livrar desse peso para satisfazer você”. Porém, era algo que não importava para seu novo amor. Na verdade, sua anatomia não agradava a si mesmo, era isso. Agora ao invés de consumir culpa, a culpa era que lhe consumia: de não se agradar. E antes que que a esperta culpa fosse corporificar em outra parte, “Eu quero ser feliz”, disse Ele a si mesmo se entregando de uma vez por toda ao presente amor assumindo a fluidez anatômica que a história molda no corpo como mãos que amassam argila fresca.

*Daniel Manzoni de Almeida é professor Dr. da Escola de Saúde da FMU