Escritos de uma vida: Sueli Carneiro e a luta antirracista
Evento do NERA promove a discussão sobre a importância dos estudos da escritora e ativista na luta das mulheres negras brasileiras
Por Paula Silva*
No período de 2 a 30 de outubro, o Núcleo de Estudos Étnico-Raciais (NERA) do Centro Universitário FMU|FIAM-FAAM realizou o evento “Sala de Leitura: Conhecendo Sueli Carneiro”, uma série de quatro encontros com duas horas de duração cada com temas relacionados ao livro “Escritos de uma vida” da filósofa brasileira e um dos principais nomes da luta antirracista do país ao lado de Lélia González e Conceição Evaristo.
No primeiro encontro, “Conhecendo a obra da filósofa Sueli Carneiro”, ocorreu uma introdução sobre a vida de Sueli e seus trabalhos dentro do Movimento Negro brasileiro. As professoras Neide Cristina Silva e Maria Lúcia da Silva foram as responsáveis pela mediação da roda de conversa. As docentes falaram sobre suas trajetórias acadêmicas e a forte relação com a luta antirracista, além de ceder espaço para os demais participantes se apresentarem. O interessante desta primeira etapa foi a necessidade de se apresentar Sueli na sua integralidade: desde seu nome e sobrenome, nascimento, família, casamento e filhos até sua vida na academia e no Movimento Negro nacional e internacional. “Toda matéria e pesquisa que li tinha textos de Sueli, mas sobre ela via muito pouco”, comentou a professora Maria Lúcia, falando sobre a invisibilidade das identidades intelectuais negras.
“Mulher Negra e a construção do Instituto Geledés” foi o tema do segundo encontro, com a participação de Suelen Girotte do Prado. A historiadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é autora de uma pesquisa sobre Sueli Carneiro e a criação do Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização fundada em 30 de abril de 1988. O Geledés surgiu num momento no qual o país passava pelo processo de redemocratização após o período da Ditadura Militar ao mesmo tempo que as inquietações em relação ao racismo estrutural vieram à tona por meio de grupos liderados por intelectuais negros – entre eles, a própria Sueli, que inclusive questionava a ausência de mulheres negras nestes mesmos grupos.
“O Geledés não foi um instituto criado ‘do nada’. Foram (através de) passos dados durante a década de 80 inteira”, apontou Suelen, fazendo referência aos trabalhos que Sueli e outras intelectuais negras como Dulce Pereira, Vera Sampaio e Tereza Santos articularam para a criação de espaços de discussão do racismo protagonizados por mulheres negras. “A Sueli é a cara do Geledés, mas na verdade ele é um grupo de mulheres, ou melhor, um grupo também criado por essas mulheres que estavam junto dela”, esclarece a pesquisadora. Toda sua pesquisa teve como base, além dos livros e artigos escritos por Sueli, os cadernos elaborados pelo Instituto que abordam temas como saúde da mulher negra, pena de morte e violências diversas.
O terceiro encontro foi marcado pela presença de Mariléa de Almeida, doutora em História pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e pela Universidade de Columbia nos Estados Unidos. “Os conceitos de “epistemicídio” e o de “dispositivo da racialidade” na tese de Sueli Carneiro” trouxe a tese de doutorado da filósofa e menções às leituras de Michel Foucault e Boaventura Sousa Santos para um debate sobre como o genocídio da população negra é um projeto arquitetado por um sistema essencialmente racista que promove a morte não somente dos corpos negros, mas da autoestima, da intelectualidade e da história negra. Em um comentário sobre seu primeiro acesso ao estudo de Sueli Carneiro sobre racismo epistêmico, Mariléa abre um parêntese, aos risos, sobre o fato de ter encontrado a tese na internet e não nas publicações de grandes editoras brasileiras como a Boitempo e a Companhia das Letras. “A questão da Sueli foi exatamente essa. Quando começa a estudar epistemologia, ela diz que nós produzimos, mas existem mecanismos de poder que fazem com que esses saberes não circulem”, destaca a historiadora.
Um depoimento carregado de sensibilidade finalizou esse encontro. Cyda Baú, atriz e quilombola participante da roda de conversa, expôs a importância do acesso aos estudos e à intelectualidade negra. Ainda em seu momento, lembrou como o processo do epistemicídio e dos dispositivos de racialidade levam nossos entes mais próximos de formas bastante cruéis, citando a morte de seu irmão, vítima da violência urbana.
O quarto e último encontro, “A contribuição de Sueli Carneiro para o movimento de mulheres negras”, recebeu a educadora Carolina Cristina dos Santos Nóbrega e a socióloga Ednéia Gonçalves, da Ação Educativa. Carolina, que é professora de educação física falou um pouco sobre seu trabalho de mestrado focado na educação física antirracista – uma forma de descolonizar uma disciplina europeizada e elitista até os dias atuais-. “Ela (a educação física antirracista) existe? Não. É uma perspectiva”, lembra Carolina, com uma provocação para se pensar. “Minha intenção é trazer a educação física para a área da comunicação, pois se a educação física for para a área biológica, a gente perde muita coisa. Com a linguagem eu consigo trabalhar de maneira interdisciplinar com a parte de artes, literatura e história”.
A educadora também deu início a sua participação com um duas propostas de interação e conexão: a primeira foi um jogo rápido onde os presentes pudessem contar até vinte em conjunto, sem interromperem uns aos outros; a segunda foi uma brincadeira originária de Moçambique chamada “labirinto”. O jogo consiste em um diagrama composto por onze arestas, no qual originalmente os jogadores colocam-se de frente um para o outro usando pedras ou outro objeto para marcar as arestas após um momento de adivinhação. Numa adaptação afro-brasileira, Carolina usou o “joquenpô” (pedra, papel e tesoura) para substituir a etapa original. A brincadeira gerou risos e descontração na roda. Finalizando sua participação, a educadora exibiu um vídeo produzido por ela e seus alunos da escola onde atua, mostrando as atividades realizadas durante as aulas de educação física adaptando alguns jogos africanos ao contexto brasileiro.
Em seguida Ednéia, que é amiga de Sueli Carneiro, também falou sobre sua trajetória na luta antirracista e seu trabalho na Ação Educativa, organização que há 25 anos promove o enfrentamento ao racismo por meio da formação de educadores e agentes culturais nas áreas de educação, cultura e juventude, atuando nas redes de ensino e em diversos órgãos públicos.
Como amiga de Sueli, Ednéia ficou responsável pelo objetivo final do evento: entregar uma carta para a filósofa produzida pelos participantes da sala de leitura. Para isso, a socióloga fez uma apresentação com algumas provocações para ajudar os participantes a elaborar o documento, elencando três contribuições dos escritos de Sueli para o movimento de mulheres negras: o enegrecimento das reivindicações das mulheres, a reivindicação de reconhecimento do direito à subjetividade da mulher negra e a valorização das biografias pessoais e as conexões entre mulheres negras. A carta foi redigida, levando as reflexões e agradecimentos de cada participante para Sueli, nome poderoso e marcante na luta antirracista brasileira e suas protagonistas: as mulheres negras.
* Jornalista graduada pelo Centro Universitário FMU|FIAM-FAAM