Caminhos cruzados pela obra de Carolina Maria de Jesus

Por Daniel Manzoni de Almeida*

Cada sujeito penetra em um escrito por um caminho singular. Eu retorno a obra da escritora Carolina Maria de Jesus em 2016, não pela escola ou ambiente acadêmico em que os escritos de uma das maiores escritoras negras deveria ser o pilar das discussões sobre o real Brasil, mas pelo sentimento de descrença nas epistemologias colonizadoras do ambiente acadêmico que me assolava pelo fracasso da tentativa de experimentar a legitimidade de vozes importantes na construção de saberes reais brasileiros: o que é ‘voz’ dentro das relações de poderes intelectuais em uma país com a impressão no tecido nacional escravagista como o Brasil? Como pensar um Brasil pela voz dos intelectualmente marginalizados? Que pensamento pode ter força para provocar uma mudança no campo das relações de um Brasil tomado por uma desigualdade dilacerante? Que vozes fora da autoridade encastelada podem e estão autorizadas a falar por nós? O que é ser um intelectual no Brasil de hoje? Como o pensamento de uma intelectual não “autorizada” pelo status quo da intelligentsia brasileira nos é importante e representativo de qualidade como forma de construirmos nosso posicionamento no universo brasileiro? Encontro, logo na linha de frente a voz de Carolina Maria de Jesus, o falar da escritora marginalizada que traz à cena principal as “epistemologias” propositalmente abafadas descortinando um cenário realista do Brasil com uma literatura de poderosa força que ressoou em mim o impacto de uma luta pela sobrevivência e busca por um posicionamento no lugar de falar. E essa é a forma como um escritor deve chegar na sociedade. Talvez essa me seja a grande marcar das palavras de Carolina de Jesus: a demarcação do espaço de luta pela linguagem. Dessa forma, conhecer Carolina Maria de Jesus e seus escritos é de necessidade orgânica e espiritual no Brasil de 2019.   

Recentemente, o escritor Tom Farias lançou uma biografia de fôlego da Carolina de Jesus que nos traz um detalhamento digno do percurso de uma das maiores escritoras da literatura brasileira. Tom Farias falou a Revista DUMELA, por meio de uma entrevista, sobre a construção e pensamento da obra biográfica de Carolina Maria de Jesus.

Tom Farias, carioca, é jornalista, professor de literatura brasileira, escritor, crítico literário, pesquisador, biógrafo, dramaturgo e roteirista. Já publicou 13 livros, entre biografias, romances, peças de teatro e ensaios literários. Entre os livros publicados, destacam-se “Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil”, e “José do Patrocínio: a pena da abolição”, já em segunda edição. É autor dos romances “Os crimes do rio vermelho” e do inédito “Toda fúria”. É autor de “Carolina, uma biografia”. Como crítico literário, já passou pelas revistas “Poesia Sempre”, “Ô Catarina” (SC), “Raça Brasil” (SP), e os suplementos literários “Ideias Livros”, do Jornal do Brasil, “Pensar”, do jornal Estado de Minas, e “Prosa & Verso”, do jornal O Globo, onde ainda escreve. Finalista do Prêmio Jabuti, de 2009, já foi agraciado com os prêmios da Academia Brasileira de Letras, Câmara Catarinense do Livro, Governo do Estado de Santa Catarina e FLUP. Colaborou no programa “Espelho”, produzido e dirigido por Lázaro Ramos, falando de personalidades negras. Atua na área do audiovisual, escrevendo para cinema e televisão. Entre seus últimos trabalhos, está uma série para a TV Cultura.

Tom Farias por Marta Azevedo

DUMELA: Como surgiu a ideia de escrever uma biografia da Carolina Maria de Jesus?

TOM FARIAS: A ideia surgiu em 2014, com o seu centenário de nascimento. Num evento literário, quando resolvemos homenageá-la, foi quando me dei conta que as obras de Carolina estavam todas fora das livrarias e lhe faltava ainda uma biografia de fôlego, que contasse profundamente a vida antes, durante e depois do fenômeno “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. O evento, a FlinkSampa, foi no mês de novembro; em março seguinte comecei as primeiras investigações sobre a possibilidade de escrever algo sobre ela. Foi daí que começou a nascer “Carolina, uma biografia”. 

DUMELA: Quais foram os principais desafios de escrever a biografia da Carolina de Jesus?

TOM FARIAS: No início a falta total de apoio – sobretudo o financeiro – para dar os primeiros passos, fundamentais em todas as pesquisas. Um trabalho como esse demanda um investimento muito alto – em função de viagens, reprodução de documentos, idas diárias a arquivos, compras de livros, despesas com hotel, transportes e alimentação etc. No rastro da história de Carolina, fui duas vezes a Sacramento, sua cidade natal, duas em Belo Horizonte, umas 20 vezes a São Paulo. Tirando o noves-fora, você passa a maior parte do tempo cuidando de reconstituir a uma história, encontrar o fio da meada, desenhar o enredo de uma vida e colocá-la no papel. Ao cabo de quase um ano trabalhando diuturnamente, você tem um material para dá início ao processo de escrita. Este é outro passo muito delicado, pois é a hora de se encontrar o melhor caminho para narrar fatos que, no caso da escritora mineira, muitos jamais ouviram falar, e sejam relevantes do ponto de vista histórico e literário.

DUMELA: Qual a importância de uma biografia da Carolina Maria de Jesus no Brasil de 2019?

TOM FARIAS: A história de Carolina continua ainda muito atual e gritante. O contexto de vida dela nos permite refletir muito sobre o país em que vivemos, pelos acontecimentos sócio-políticos e culturais que continuam colocando à parte e marginalizando uma camada significativa da nossa população, notadamente a mais pobre ou periférica. Como moradora de favela, Carolina ainda representa, simbolicamente, centenas de milhares de mulheres e homens negros e pobres que vivem sob o domínio da elite (eminentemente branca) que domina o país. O discurso estampado no seu principal livro, “Quarto de despejo – diário de uma favelada”, continua contundente, dramático, real, revelador. Permanece latente nas cores e feições e, no momento, nas ruas de qualquer cidade brasileira, ou na fisionomia amarela de pessoas que só podem contar com elas mesmas, com mais ninguém.

DUMELA: Na atualidade, com as diversas possibilidades de publicações no mercado editorial e na internet, pode-se dizer que essas possibilidades auxiliam no aparecimento de “muitas Carolinas”? Ou mesmo com essas facilidades “muitas Carolinas” ainda estão abafadas?

TOM FARIAS: Em certa medida, sim. Por outro lado, a Carolina Maria de Jesus que conhecemos até agora não vai existir novamente. Existem histórias de pessoas que se aproximam do ideário da escritora mineira, mas não são essencialmente “carolinas”. Carolina foi um fenômeno social com áurea de gênio, uma revolução cultural em forma de mulher negra e com a roupagem de escritora. Agora, sim, ela deixou um legado que pode fazer com que se relevem talentos, se arrojem atitudes, que projetem para além do muro das chamadas periferias (as favelas e comunidades) vozes que podem dizer muito do que precisamos ouvir e gritar. Outros gênios aparecerão, à semelhança da escritora de Sacramento. Carolina é o caso único na história da literatura, não só brasileira, mas em todo o mundo, que superou adversidade, derrubou barreiras e venceu pelas letras.

DUMELA: Na biografia sobre Carolina de Jesus que você escreveu podemos perceber como a escritora apoderou-se do seu tempo e do seu real para pensar sua condição de vida. Como você percebe a relação entre Literatura e Sociedade como forma de pensar a realidade?

TOM FARIAS: Antes de tudo, Carolina tinha plena noção do seu tempo e espaço. Ela foi senhora de si. Dominou e soube manipular sua condição social de classe baixa em meio à pobreza em que vivia na Favela do Canindé. Os moradores da favela sabiam disso, e de certa forma a própria favela também se apoderou do fenômeno Carolina Maria de Jesus como um todo. No campo relativo à literatura versus sociedade, este é outro módulo caro para entender onde Carolina quis chegar com a sua escrita. Como escritora, Carolina quis manter um diálogo com a sociedade do seu tempo. E de certa forma conseguiu. Seu livro derrubou padrões, barreiras, costumes. Deu voz a favelados, negros e deserdados da sorte e da fortuna. As narrativas diárias – os seus diários – foram a forma melhor encontrada para este fim. Ao alcançar este objetivo, ela sai do campo das ideias apenas, para algo mais pragmático, trabalhando intenções de políticas públicas com relação à moradia, educação, emprego e cultura. Suas propostas foram tão fortes e tão bem embasadas, que um movimento foi criado de desfavelização, com viés acadêmico. A escritora passou a ser vista como potencial candidata para alavancar candidaturas de prefeitos, governadores e presidentes, e deixou o anonimato para se tornar uma voz potente e um nome lembrado nos principais eventos políticos e literários ao longo da década de 1960, ao lado de grandes nomes do status quo da cultura das letras.

DUMELA: No Brasil de 2019 há espaço para uma literatura como a de Carolina que ainda resgate uma discussão dos reais problemas brasileiros?

TOM FARIAS: Sempre houve. E não só no Brasil de 2019. Diante dos fatos – desemprego em massa, genocídio da população negra, racismo, preconceitos, pobreza generalizada, violência contra a mulher, feminicídio, favelização das ruas e marquises -, acho que por tudo isso, os espaços para gerações de novas Carolinas vão estar sempre abertos e sob novas lideranças, como a de Conceição Evaristo, outra mineira de voz potente.

DUMELA: Qual a grande força que a literatura de Carolina Maria de Jesus deixou e que atravessa o tempo?

TOM FARIAS: Carolina publicou quatro livros. Todos os demais são póstumos. Ainda há muita coisa de Carolina inédita: romances, peças de teatro, uma atualização da sua coleção de poesia. Carolina continua sendo um caso pouco estudado: a academia ainda torce o nariz para o fato de ela ser uma escritora que não foi devidamente escolarizada, isto é, não teve diploma. Isto faz com que as grandes editoras – ainda mais agora com a crise no setor – não patrocinem uma grande campanha em torno dela, com a reedição dos seus livros e publicação dos seus inéditos. Obviamente a falta de tudo isso impacta muito nessa força que estamos falando. Com isso, Carolina fica circunscrita como a eterna autora de “Quarto de despejo”, nada mais, muito embora ela ainda continue sendo lida e estudada no exterior, como se tem prova, e continue a ser a autora negra mais publicada em outros países, cerca de 46, e idiomas, cerca de 16. Ora, precisamos deixar de hipocrisia e frases prontas, e dar a Carolina Maria de Jesus, que nos anos de 1961 chegou a ser chamada a “Shakespeare de cor”, o lugar que ela merece na literatura brasileira.

DUMELA: Qual a importância e responsabilidade de um escritor no Brasil de 2019?

TOM FARIAS: Daniel, meu amigo, que pergunta. Acho que o escritor, como todo artista e cidadão, precisa ter responsabilidades com a verdade. A premissa da verdade deve ser aquela do caminho norteador, o leiv motiv que fará a conexão dele com o universo que vai além do seu mundinho e universo. Nesse aspecto, falando pelo lado do escritor negro, como é o meu caso, a responsabilidade é levar para um certo povo, o meu povo, o povo do meu mundo, o maior número de informações possíveis, formar leitores e leitoras entre a população negra com base em histórias que tenham a ver com a nossa realidade, com o nosso sonho, com os nossos sentimentos. Tomar a rédea da nossa história para que, como escritor, outros se orientem e se espelhem a tomar o rumo também de suas próprias histórias.

*É professor e pesquisador no FMU|FIAM-FAAM Centro Universitário. Como escritor é colaborador da Revista DUMELA