Você sabe o que é macumba?

Por Caroline Queiroz*

A palavra tem origem Banto e é o nome dado a uma árvore da família das lecitidáceas, própria do solo africano. Com a sua madeira produziam um tipo de instrumento musical que passou a ser chamado pelo mesmo nome de sua matéria prima.

Por desconhecimento, o senso comum acaba generalizando e reduzindo tantas diversidades em uma coisa só. No intuito de explicar e fugir da generalização, batemos um papo com André Duarte, pesquisador e doutorando em Comunicação e Cultura.

Então, se macumba é uma árvore e instrumento, porquê se referem assim às religiões de matriz africana? André responde e você confere aqui.

Dumela: Qual a origem da palavra macumba?

 ANDRÉ DUARTE: Na diáspora, o povo banto (que veio de onde hoje é a Angola e o Congo) praticava um ritual sagrado em que havia o transe mítico e a manifestação de entidades que davam consulta. Esse ritual passou a ser denominado no Rio de Janeiro do século XIX e início do século XX de macumba pelas elites, provavelmente por causa do instrumento musical que fazia parte da liturgia. Os jornais da época disseminaram o nome, por ignorância mesmo, numa época em que as expressões culturais negras eram criminalizadas, e assim ficou. Os próprios descendentes de escravos se apropriaram da palavra para se referirem ao culto, cuja organização em nada se assimilava ao conceito europeu de religião.

“Esse ritual passou a ser denominado no Rio de Janeiro do século XIX e início do século XX de macumba pelas elites, provavelmente por causa do instrumento musical que fazia parte da liturgia.”

D: Quais as similaridades e diferenças entre a Umbanda e o Candomblé?

AD: Ambas são religiões brasileiras e, assim como a macumba, ambas são palavras de origem Banto. Enquanto a Umbanda nasceu no Rio de Janeiro, através de um processo sincrético entre a macumba, o espiritismo kardecista, a jurema sagrada e o catolicismo popular, o Candomblé veio da Bahia congregando as divindades oriundas de diferentes tribos africanas que tiveram que se unir para sobreviverem em solo brasileiro. A Umbanda trabalha com os orixás indiretamente, através dos “caboclos de orixás”, que incorporam nos “cavalos” (médiuns). Já no Candomblé ocorre um processo diferente, onde os orixás se manifestam diretamente no transe mediúnico, mas não vem “de fora para dentro” e sim “de dentro para fora”, como se fosse uma “excorporação” ao invés da incorporação.

D: Quais simbologias estão presentes nessas palavras?

AD: Ancestralidade. Existe uma temporalidade não linear, circular, que une o passado, o presente e o futuro através de uma ética, que nada tem a ver com moral, mas sim com uma espécie de discurso do pai fundador da comunidade. O terreiro é o símbolo-maior dessa tradição sem tradicionalismo, que se atualiza de acordo com os novos significados dos símbolos no imaginário coletivo. As palavras Umbanda e o Candomblé são poéticas, foneticamente agradáveis ao serem pronunciadas, portadoras de um axé próprio.

D: O que são os orixás?

 Segundo Muniz Sodré o orixá é um princípio cosmológico, uma explicação mítica de como sua cabeça foi construída. Cada explicação cosmológica dessa tem uma divindade. No pensamento nagô os orixás são princípios cosmológicos que se atualizam liturgicamente como incorporais, apropriados pelos iniciados. Como os significados não tem corpo, eles estão excluídos do fluxo causal dos acontecimentos e se tornam condições de possibilidade de pré-existência dos corpos. Portanto, os incorporais são essas condições de possibilidade. E a vivência empírica dos incorporais se dá pelo transe.

D: O umbandista e candomblecista acredita em Deus?

AD: Sim. As duas religiões são monoteístas. Apesar das divindades intermediárias, há somente um criador, seja chamado Olodumare, Zambi ou Deus. Mas o criador da cosmovisão yorubá se desdobra em incontáveis orixás. Neste caso específico ele é um, mas não é uno. Isso parece estranho à ideia de unidade absoluta ao qual o Deus cristão foi atribuído.

D: O sincretismo religioso foi criado para a proteção e preservação dos rituais das religiões afro-brasileiras: os escravizados africanos relacionavam os seus orixás com os santos católicos para não serem punidos. Como se não bastassem serem arrancados de sua terra, ainda lhe cerceavam o direito ao exercício de sua fé. Qual a sua opinião sobre o privilégio branco que se dá, inclusive, nessa hora, pois ser macumbeiro e branco é mais “aceitável” do que negro macumbeiro. 

AD: O processo sincrético no Brasil foi bem mais complexo. A gente aparentemente considera que o sincretismo entre orixás e santos católicos se deu única e exclusivamente por uma questão de proteção para que os negros fossem aceitos e perpetuassem seu culto. Não foi apenas por uma questão de proteção, pela própria característica do povo brasileiro, em relação a fé e a (quase) divinização dos santos católicos, esse processo se deu de forma muito natural. De fato há um privilégio de ser um macumbeiro branco, sofro menos preconceito, embora meu fenótipo não seja e eu não me considere branco. Um macumbeiro homem sofre menos preconceito que uma mulher macumbeira. O homem branco macumbeiro sofre menos preconceito que uma mulher negra macumbeira. Por ser heterossexual, eu sofro menos preconceito que um homem homossexual macumbeiro. Então, infelizmente, há um privilégio, mas não é uma questão da religião e sim uma questão da sociedade.

“De fato há um privilégio de ser um macumbeiro branco, sofro menos preconceito, embora meu fenótipo não seja e eu não me considere branco. Um macumbeiro homem sofre menos preconceito que uma mulher macumbeira. O homem branco macumbeiro sofre menos preconceito que uma mulher negra macumbeira. Por ser heterossexual, eu sofro menos preconceito que um homem homossexual macumbeiro. Então, infelizmente, há um privilégio, mas não é uma questão da religião e sim uma questão da sociedade.”

D: Uma vez que homossexuais não são bem vistos em religiões cristãs e levando em consideração as diversas questões sobre gênero na sociedade, como se dá este tema dentro da religião? Como é a relação de LGBTs e os orixás?

AD: É uma questão muito interessante; há esse mito de que o rodante (praticante do candomblé) é homossexual, porque o candomblé congrega muitos travestis, transexuais. Além de tudo, há o estereótipo de que o rodante tem tendências homossexuais, sobretudo se ele estiver com um orixá de cabeça uma divindade feminina. Na verdade não há nenhuma relação direta entre orientação sexual e filiação a um orixá. Então, se existe um expressivo número de praticantes homossexuais é por se tratar de  uma religião que aceita a pessoa independente da orientação sexual. A umbanda é menos libertária, há casas mais conservadoras que não permitem homens receberem entidades femininas, mas eu vejo que a questão de gênero dentro dessas religiões faz com que as pessoas se conscientizem de que esse tabu é desnecessário.

D: Fale da época que o candomblé/umbanda era perseguido no Brasil; praticantes eram presos e os terreiros só foram deixados em paz depois da era Vargas.

AD: A era Vargas foi bastante repressiva com relação aos terreiros. Uma parte da umbanda se consolidou através da federalização e esse foi um diferencial, principalmente em relação ao candomblé. Como uma parte da elite abraçou a umbanda, tiveram um respeito maior ao governo e a ligação com a macumba carioca foi segregada justamente neste período, pois para sobreviverem e gozarem de relativa liberade, foram obrigados a desafricanizar seus rituais. Por isso, hoje, os rituais se assemelham muito mais ao kardecismo espirita, embora eu veja a umbanda como uma macumba cristianizada.

D: O sincretismo contribuiu para a demonização do orixá Exu?

 AD: É muito curioso que Exu tenha sido o único orixá não sincretizado com nenhum santo católico. Isso porque ele é um principio filosófico e cosmológico que difere completamente do maniqueísmo, da visão do bem e do mal, logo ele não faz o menor sentido na visão cristã. Por este motivo ele foi demonizado, ainda na África, pelos colonizadores. Eles viram uma entidade sendo cultuada com o símbolo de um pênis ereto, cercado de fogo, logo associaram ao demônio, ao diabo. Quando os yorubás chegam ao Brasil continua esse processo sincrético com o diabo. O senso comum considerou o exu com o diabo e a umbanda se apropriou dessa figura deturpada, mas no bom sentido de colocá-lo como o tal. Na época das senzalas os senhores de engenho tinham medo da imagem de exu e por isso permitiam os cultos, então historicamente essa demonização também foi responsável pela salvação desses cultos. Vale destacar que uma coisa é o orixá Exu, cultuado no candomblé, já na umbanda não se cultua orixá exu. Ele é o princípio da comunicação, sem exu não há comunicação.

D: Que a visão o brasileiro tem das religiões de matriz africana para relacionarem-nas com “coisas do diabo”?

AD: Temos culturalmente uma herança católica que nos fala que para entrar no céu você precisa ser de determinado jeito. Baseado na psicologia younguiana tenho a teoria de que a pessoa projeta no outro aquilo que ela mesma não reconhece em si. Acredito que a intolerância tem um motivo psicológico: a pessoa vê, principalmente no exu, aquilo que ela foi obrigada a cortar de si própria. Este processo é doloroso e gera uma culpa. Estamos passando por um grave período de intolerância religiosa; a culpa é o principal responsável pela intolerância. A pessoa enxerga nas religiões afro aquilo que ela gostaria de sentir: alegria de saber que não existe o certo, o errado e o pecado. Com isso, não permite que outras pessoas tenham algo que não lhe é permitido ter e partem para cima.

D: Comente quais os desafios de você, branco, que se autodeclara macumbeiro (vi um post seu no Facebook) estudar esse assunto. Como surgiu o seu projeto? Qual a importância para desconstruir estereótipos?

 AD: Eu fui criado em um terreiro de umbanda e desde pequeno tive muita familiaridade com o trabalho das entidades, então aquilo para mim sempre foi muito normal. Quando eu fui crescendo, fui descobrindo meu próprio caminho e a intelectualização dos conceitos espirituais foi muito importante. Mas em determinado momento eu cheguei a olhar para esse meu lado macumbeiro de uma forma pejorativa porque, de alguma forma eu assimilei um discurso de que nada disso era necessário. Recentemente tive a grata surpresa de conhecer o candomblé, filosófica e intelectualmente. Me divido entre as duas religiões e um dos caminhos políticos é me reconhecer como tal e transmitir essa mensagem, minha identidade macumbeira. É muito orgulho. Assim me posiciono e tento desmistificar a demonização dessas duas religiões.