Uma resistência em meio a selva de pedra
Texto e fotos Gabriela Barbosa[1],  Verônica Andrade [2], Maria Carolina , Danilo Bonfim, Thais Costa, Matheus Soares*

O centro cultural e quilombo paulista Aparelha Luzia tem muito a dizer

O caminho parece longo quando se atravessa a Avenida São João. As ruas, marcadas pelas diferenças de sociais gritantes e pelo grito da indignação dos grafites e dos múltiplos extensos, chamam a atenção de nossos olhos e câmeras de celulares. Com uma entrada discreta, em contraponto com o grande painel da ex-vereadora Marielle Franco, existe um local destinado para encontros e discussões a respeito da comunidade negra no Brasil. Chama-se Aparelha Luzia, um quilombo urbano localizado na Rua Apa, região central, próximo ao famoso Castelinho. Com encontros semanais e atrações indispensáveis, o espaço ganha vida com suas narrativas que inspiram jovens e adultos negros que lutam diariamente contra preconceitos e dogmas.

Dia, noite e madrugada este lugar emana uma luz própria que nos permite sentir

Aberto oficialmente de quinta-feira a domingo, no período noturno, é um centro cultural e político voltado aos artistas e a população preta, como firmou May, uma das organizadoras do Aparelha. Foi inaugurado em 2016, e seu nome faz uma homenagem a antigos aparelhos (espécies de apartamentos ou casas) em que resistentes à Ditadura Militar residiam clandestinamente ou se encontravam para reuniões e discussões. E Luzia, em homenagem ao fóssil humano mais antigo encontrado na América, que continha traços e fenótipos negros muito antes do início do tráfico de escravos no século XVI, mas que quase se perdeu no incêndio do Museu Nacional.

 

“ESTE LUGAR ME TRANSFORMA (…)

EU VEJO QUE AS PESSOAS PASSAM POR ESTE MESMO PROCESSO”

– Erica Malunguinho

As primeiras divulgações do espaço foram feitas pela boca a boca: a idealizadora e gestora Erica Malunguinho, participava de eventos e convidava quem estivesse ao seu alcance para conhecer o espaço. Hoje se percebe que tudo não foi em vão, já que o Aparelha recebe mais de 400 pessoas por semana, e suas redes sociais se tornaram uma grande aliada para os antigos e novos visitantes. O local recebe uma pluralidade de pessoas, não se importando gênero, etnia, orientação sexual, posição social e ideologia política. Entretanto, é importante respeitar o convívio e a todos que estarão presente, já que existe liberdade em expor ideias e opiniões.

Alguns dos principais nomes que já passaram por aqui: Leci Brandão, Samba de roda da Nega Duda, Samba da Marcha das Mulheres Negras, Adriana Moreira, Luedji Luna, Dena Hill, Lena Bahule, Pedro Guimarães e Filhos de Gandhi; os escritores Cuti Silva, Akins Kintê, Alan da Rosa, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva e Ricardo Aleixo; os intelectuais Rosane Borges, Saloma Salomão e Oswaldo Faustino. Além de os novos sucessos desta geração Xênia França, Preta Rara, Tássia Reis, Liniker e Raquel Virginia.

Um local onde os iguais se unem e os diferentes acrescentam

Stephanie (22), uma estudante carioca de Belas Artes, sentiu-se abraçada pelo ambiente, já que, tinha receio de comparecer ao local pelo tom claro de sua pele. “Eu acreditei que o meu desconforto seria o meu acompanhante nesta visita. Porém, me enganei profundamente. Este lugar é magico”, afirma.

Um passado negligenciado

Um ambiente que apresenta séculos de lutas e opressões e absorve vozes que nos conta suas inúmeras memórias. Cada objeto na sala – moveis antigos, bonecas negras, fotografias, tambores e lamparinas- apresenta um fragmento da resistência diária que emana de cada parte do local.

Para Sergio Vaz, responsável pelo belo e necessário Sarau Cooperifa o Aparelha tem papel fundamental na desmistificação de diversos preconceitos “(…) e leva para o lugar devido a tal da magia negra, que é vida”.

Os debates dentro da comunidade negra estão se tornando cada vez mais intensos e fortes, principalmente em tempos de assuntos como colorismo e os mitos e verdades por trás do termo democracia racial. Com o avanço diário dos meios tecnológicos e da enorme gama de informações (que muitas vezes são de fontes duvidosas) pode ser difícil encontrar espaços que façam discussões importantes, empáticas e com responsabilidade.

Muito se é estudado, principalmente durante o ensino médio, sobre os acontecimentos em países como os EUA como a triste Era Jim Crow e a luta de Martin Luther King contra a segregação racial. Porém, é de suma importância abrir os olhos sobre o persistente grande problema em nosso país – que se alastra durante séculos – e no quanto ele agride física e emocionalmente pessoas negras, que apenas anseiam por respeito e condições de equidade.

A falta de representatividade

Mesmo com as redes sociais e os espaços midiáticos, ainda subsiste um desfalque considerável da representatividade negra em muitos cenários, principalmente quando o assunto é o mercado de trabalho. São vários os motivos que levam a estatísticas tristes e alarmantes que são noticiadas nos veículos de massa. Por isso, quando um local como o Aparelha Luzia consegue fazer chegar aos negros e afrodescendentes paulistas diferentes vozes e inspirações de luta, opressão e um quê presente de esperança e força, uma nova forma de distribuição de informação é construída.

Segundo a idealizadora e gestora Erica Malunguinho – mulher trans, negra e nordestina – o Aparelha pode ser visto como um centro cultural-bar-lugar-de-resistência ou “associação-preta-política-artística-gentista-destruidora-das-razões-dominantes”. Um local onde os seus frequentadores podem discutir sobre sua negritude sem medo de possíveis julgamentos e ainda curtir músicas e conhecer pessoas que podem auxiliar em questões presentes no seu dia a dia. Existe uma conexão entre passado, presente e futuro que estão entrelaçados pela importância da coletividade em repassar o quanto é importante difundir a produção artística e política destas pessoas em um país como o Brasil, em especial, o estado de São Paulo, que apresenta uma pluralidade em seus rostos e costumes.
Um ambiente que representa a cultura de seus ancestrais e povos

 

A LUTA CONTINUA

Os dados apresentados acima, destacam uma realidade passível de diversas interpretações e apenas uma verdade: um espaço como o Aparelha deveria ser obrigatório em todos os estados brasileiros. Não somente como forma de ampliar discussões de cunho étnico-racial, mas para resgatar o passado que ainda permeia e nosso presente.

O Aparelha Luzia torna-se não só um polo de cultura de corpos negros, mas um ato político, que diz por meio de seu chão, suas paredes e seus enfeites de ancestralidade africana que a negra e o negro escravizados de outrora e, perversamente excluídos para um projeto de nação, irão continuar a construir e expandir seu próprio território. Quem visita o local pela primeira vez vai atrás de um refúgio, de um afago, de uma oxigenação nos sentimentos contra o sistema que insiste em privilegiar os já privilegiados, para logo depois, aos poucos, se sentir em casa, no seu recinto, nos braços de sua cultura. Axé!

[1] Aluna do quarto semestre do curso de Jornalismo e monitora do NERA (Núcleo de Estudos Étnicos-Raciais).
[2] Aluna do quarto semestre do curso de Jornalismo e monitora da AICom (Agência Integrada de Comunicação).
* Texto produzido inicialmente para a disciplina de Texto jornalístico em novembro de 2018 sob a orientação da professora Carla Tôzo quando os alunos cursavam o terceiro semestre.