Rincon Sapiência lança Galanga Livre, uma crônica vibrante da vida nas cidades brasileiras

Por Marcello Gabbay*

Quem é Danilo Albert Ambrosio? Nome robusto, mas concreto demais pra um cronista da cidade. Rincon Sapiência foi uma escolha melhor; ainda mais forte e direto. O saber da cidade está impresso nas letras rappeadas de Rincon. Com 32 anos completos, o poeta paulistano finalmente ganhou um reconhecimento mais amplo com o disco Galanga Livre (2017).

É mesmo injusto dizer que um artista “surgiu” quando lança um álbum com maior estrutura de divulgação e distribuição. Rincon já está na área desde o ano 2000. Natural de Itaquera, morador da Cohab I, o rimador Sapiencia adotou o nome do ídolo de futebol, o colombiano Freddy Rincón, que jogou no Palmeiras e no Corinthians na década de 1990. Mas a geração do menino Danilo é aquela que foi arrebatada pelas narrativas pungentes dos Racionais MCs. O rap Diário de um detento, de 1997, colocou no eu poético o jovem brasileiro que vive encarcerado e apartado das glamourosas ruelas da Vila Madalena. Os anos 1990 foram uma época de descortinamento do Brasil por meio da música popular. De um lado, Lenine e Chico Cesar trazendo as andanças do retirante, de outro, as resistentes cenas cancionistas do Norte, com a Roraimera, a Música Popular Paraense, etc, e no “centro” do país (com todas as aspas do mundo!), a vibrante cena do rap de São Paulo e do funk do Rio de Janeiro ampliando e amplificando as vozes da cidade.

Foi nesse cenário que Danilo Albert cresceu, distribuindo panfletos nos semáforos da cidade pra comprar os CDs na Galeria do Rock da Rua 24 de Maio. Mais tarde, como atendente de telemarketing, já com 25 anos de idade, Rincón se aproximava de dar forma a seu primeiro single, Elegância, lançado em 2011.

Em Galanga Livre, treze faixas trazem uma unidade sonora e narrativa concisa e potente. Acompanhado dos samples e scratches, o som trás também muitas guitarras que dão um molho mais arrojado para o repertório, mérito talvez do produtor William Magalhães, da banda Black Rio. O destaque vai para Crime Bárbaro, que aproxima a realidade do homem negro dos tempos da escravidão com os dias atuais. A figura do “nego fujão” encarna ao mesmo tempo os dias dos navios negreiros e a realidade dos subúrbios das grandes capitais brasileiras. Pouca coisa mudou entre o século XIX e 2017. O verso “na pele eu levo a marca da tortura” não podia ser mais representativo da condição que faz do nosso país um território marcado pelo racismo como constituição histórica.

“A volta pra casa” é a faixa que narra as arduras da vida nas cidades. O tempo estendido do trabalho acrescido da difícil tarefa de exercer o direito à cidade é uma forma contemporânea de escravidão. A luta pela (re)existência acaba sufocando toda a energia que poderia ser empregada na busca pela liberdade e pela felicidade. Reflexão com tom filosófico que aproxima Rincon de grandes textos da teoria crítica pós-revolução industrial. “Da casa pro trampo, do trampo pra faculdade / O corpo exausto, apesar da pouca idade / Sem novidade, a mesmice na rota / Tentando ser um bom funcionário com boas notas / Trabalhar, estudar, nem sempre se encaixa / Nem mesmo no fim da aula o aluno relaxa”, brado que nos convida a pensar sobre o tempo da vida e sobre a estrutura de funcionamento da cidade e da cidadania.

Em “Moça Namoradeira” temos a acertada participação de Lia de Itamaracá, a mestra pernambucana, que dá um molho todo especial ao disco. Daí em diante, uma pedrada atrás da outra. Músicas que fazem de Galanga Livre uma crônica de nossos dias. Talvez uma versão mais descritiva da potente “Não existe amor em SP”, de Criolo (do disco Nó na orelha, 2011). Mas não faltam músicas dançantes, como “Meu bloco”, e românticas, como “A noite é nossa”. Ainda assim, a mensagem deixada por Rincon Sapiência é clara: a realidade das ruas do Brasil não está nos grandes jornais, mas nas formas mais vivas e orgânicas de comunicação, como a canção.

Se o samba, os maracatus, carimbós e batuques são o espaço comunicativo das culturas do interior do Brasil, o rap, o hip-hop, o funk são algumas das formas reais de discurso nas grandes cidades. Vibração tribal que vem do cotidiano, que traz a festa, as cores e as dores da vida de todo o dia. “Já ouviu falar em pobreza? / Pobreza, ela não morreu”, é a frase que ressoa quase no finalzinho da aventura que é o Galanga Livre. Viva Rincon, viva a fala das ruas.

 

*Doutor em Comunicação e Cultura e autor do livro “Música Popular e Comunicação Poética” (Ed. Appris, 2017)