“O meu sangue, o meu coração e a minha mente queriam o teatro negro”
Maria Carolina
Ao chegar em nosso local de entrevista, no Sesc Consolação, eu estava apreensiva. A responsabilidade de falar com um dos grandes nomes do teatro negro estava me deixando com as mãos suadas, especialmente pelo nosso curto tempo de conversa. Mas, assim que a avistei, ela já me abriu um sorriso e disse “Carol, finalmente deu certo!”. E foi assim que surgiu o bate-papo que vocês estão prestes a ler.
Se existe uma palavra que descreva Dirce Thomaz, ela é “hipnotizante”. Nascida no interior do Paraná, a futura Carolina Maria de Jesus no teatro já sabia o que seu destino estava sendo escrito quando, em sua adolescência, ao iniciar seus estudos, aprendeu e se apaixonou pela arte de atuar ao se interessar por declamação e recitação. Ao descobrir o teatro de rua, emendava uma peça na outra. “Eram sábados e domingos. Depois que a gente parava e montava uma peça, já ensaiava outra e depois outra”.
Emblemática, deu vida a Xica da Silva, dirigida por Antunes Filho, em 1988, durante o centenário da abolição da escravatura. Desde então, realizou diversos trabalhos no teatro e no cinema, além de desenvolver projetos paralelos, sempre com o intuito de levar cultura para espaços inclusivos e que possam proporcionar mudanças. Na nossa conversa abaixo, Dirce nos teletransporta para sua própria história, que por si só já daria uma bela crônica que poderia ser escrita por Machado de Assis:
DUMELA: Como iniciou sua relação com o teatro?
DIRCE THOMAZ: Comecei a estudar tarde, aos 14 anos. Meu pai era músico e já sabia ler e escrever, mas minha mãe não lia e nem escrevia, embora fosse uma sábia. Então, isso me fortaleceu. Eu cheguei na escola gostando da atuação e era muito boa no inglês. Eu lembro que, na Copa de 1970, eu criei poesias pelo tricampeonato brasileiro. Ao mudarmos para Umuarama (PR), ficamos pouco tempo na cidade. Naquela época, a Jovem Guarda de Umuarama fazia muito sucesso. Em Curitiba (PR) participei de grupos de jovens e me encontrei com o teatro de bairro. Montei vários grupos teatrais, como o Juventude Unida do Bairro Alto. Me formei manequim pelo Senac, da primeira turma, e trabalhei como secretária e em alguns projetos de modelagem. Mas, enfrentei muito preconceito, porque a cidade era muito racista e preconceituosa.
D: Consigo até imaginar o que você deveria ouvir.
DT: Demorou muito tempo até eu arrumar um trabalho. Daí consegui com um grande empresário gaúcho: o Eugênio Leite. Eu tenho um apreço muito grande pelo povo gaúcho, porque foi quem me deu oportunidade de trabalhar. Eu ia toda maravilhosa, com cabelo e unhas feitas. Meu apelido era “pantera cor de rosa”. A minha autoestima estava lá em cima. Trabalhei algum tempo no Sindicato dos Artistas, que era ainda Associação dos Artistas. Foi aí que, em 1981, decidi vir para São Paulo e comecei a trabalhar com os meus amigos do Banespa, que tinham um grupo de teatro que faziam festivais com as agências do interior. Depois, conheci Antunes Filho e não parei mais. O meu sangue, o meu coração e a minha mente queriam o teatro negro.
D: E como foi a sua experiência como intérprete de Xica da Silva de Antunes Filho em pleno centenário da abolição?
DT: Trabalhei dez anos com o Antunes até vir a minha Xica da Silva. Foi no ano do centenário da abolição, então sempre diziam que não era pra comemorar. Eu também não estava comemorando, mas esse espetáculo era um ponto crítico e até hoje está sendo discutido na minha dissertação de Mestrado, porque agora tenho outras faces de Xica. Eu não faria Xica como eu fiz, porque tenho outro olhar. Eu aprendi muito. Naquela época eu era uma caipira. Ainda sou caipira, mas eu sou uma caipira mais sábia. O Antunes inspirou a fazer teatro negro porque tinha um núcleo de atores negros na época da Xica. Trabalhei com uma galera que me incentivou muito também, como minha comadre Cida Moreno e o saudoso Paulinho Pompéia.
D: Foi assim que surgiu a Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro?
DT: Tenho a Invasores Companhia Experimental de Teatro Negro desde os anos 2000. ou seja, há 22 anos que a gente trabalha a questão do teatro negro. Estou com uma média de 15 textos, que é minha dramaturgia, alguns por finalizar entre performances e comédia com dois textos infanto -juvenis. Uma das comédias que eu escrevi se chama “O Drama da Amélia”. Ela vem da exposição que eu assisti no CCBB-SP sobre a África. Outra é Negras Narrativas. Uma mulher negra, gorda, forte, sentada na Teodoro Sampaio, perto da Benedito Calixto da feirinha. Ela blasfemava, xingava. Ela estava muito revoltada. Daí cheguei em casa, comecei a escrever e surgiu Negras Narrativas.
D: E como você direciona este seu olhar às suas pesquisas?
DT: Hoje eu faço essa pesquisa de teatro, que é potente e de ressignificação. É uma pesquisa de resistência, mas também de urgência. Eu discuto muito isso na faculdade: você vê uma cena e pensa: “O que aquele negro ou aquela negra está passando? O que o George Floyd passou com aqueles gritos de ‘Não consigo respirar’?”. Tudo isso cala fundo na minha alma. É o relato do negro. O trabalho de performance que eu fiz com a Maria Lúcia sobre Lélia Gonzalez, eu falei: “Meu Deus, eu quero alguma coisa de teatro”. E depois de ver as mulheres emocionadas eu só pensava que esse diálogo, que é o teatro que eu faço e o teatro que atravessa, é o teatro da potência, é o teatro da urgência, é o teatro que diz sobre as mulheres negras e as populações negras que estão sofrendo. Cada flecha que atravessa o negro dói em mim porque eu sou negra. É impossível não não sentir o que o outro está sentindo.
D: Por mais que lutemos todos os dias, incansavelmente, parece que nunca vai existir um cessar de tudo.
DT: Racismo, facismo, sexismo e nazismo. O ser humano está muito mais difícil. Então, só muita arte para nos salvar.
D: Como você relaciona o impacto que suas experiências pessoais tiveram em seu trabalho?
DT: Depois de trabalhar com o Antunes, eu não fui aceitando qualquer coisa. Fui me engrandecendo. Passei a ter um olhar mais crítico sobre o meu trabalho. Por mais que tenha dúvida se eu faria ou não aquele curta [Xica da Silva] de novo, ele me ascendeu para o mundo como atriz e me abriu os olhos para chegar em Carolina Maria de Jesus, que me fez chegar no “Eu e Ela: visita a Carolina Maria de Jesus”. Eu já estou nesta luta e navegando a muito tempo.
D: E os novos projetos. Estão a todo vapor?
DT: A pandemia quase me enlouqueceu. Mas fiquei só no quase, porque eu escrevo. Tenho um projeto piloto de um programa de humor. Eu criei um livro de poemas que será editado pela Neide Almeida, que trabalhou no Museu Afro, é socióloga e da educação. Nele terá mulheres negras, psicólogas, poetas, atrizes, professoras, escrevendo poesia. E também criei o Sarau das Negras Velhas. Também criei dois sambas enredo: um pra família do Solano Trindade e outro para minha família. É essa doideira que está acontecendo na minha vida. A pandemia me encurralou, mas minha mente e corpo estavam soltando tudo o que eu tinha por dentro.
D: Você identifica que hoje o seu público se multiplicou?
DT: Eu percebo que agora tem um número grande. No Instagram, cresceu muito e fui obrigada a começar a usar Whatsapp.
D: E em relação ao público que acompanha os espetáculos de teatro negro?
DT: Eu tento pegar as pessoas lá do canto delas e trazer para o meu. Tanto que, com Carolina agora, eu trabalhei muito com os CEUs. Eu fiz muitas performances e ganhei um muito público. Estou sempre falando sobre teatro negro. Estou sempre respirando e inventando. O meu teatro me ressignifica, mexe comigo. E voltando ao público, acho que ele responde muito nas escolas. Circulei com Carolina no CEU Heliópolis, uma emenda que eu ganhei na Casa de Cultura da Penha, no Centro Cultural Centro de Cultura Grajaú, na casa do Centro Cultural Negro Antigo de Oxalá, no Jabaquara, e encerrei na Casa de Cultura de Parelheiros. Mas o calcanhar de Aquiles foi quando eu estava na Funarte. Consegui lotar a Sala Guiomar Novaes com 150 lugares só falando sobre Carolina. Os seguranças falaram “nunca vi nada assim, a peça da senhora deve ser muito boa”. Isso mostra que o teatro negro já tem público.
D: Já se passaram quase 19 anos desde a promulgação da Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. Mas, sabemos que a educação étinico-racial não é uma realidade, mesmo que existam suas discussões em nosso cotidiano. Por isso, em sua visão, especialmente enquanto arte-educadora, qual o impacto de um ambiente acadêmico, como o que existe na FMU – que permite o desenvolvimento do Núcleo Etnico-racial e da revista Dumela, além da Sala de Leitura.
DT: As pessoas não conhecem a história daqui. Por quê? Porque falta educação. Falta respeito aos diferentes. Precisamos falar sobre as diferentes realidades vividas no Brasil. No dia 20 todos fazem um desfile. Mas, nós negros, existimos todos os dias. É preciso começar pela base, pois as crianças têm a mente mais aberta. O adulto quando está com a mente lacrada, você precisa voltar para buscar mais. Quando ele desperta, é muito bonito. Vale lembrar que ninguém é uma tábua rasa. A pessoa, quando chega em algum espaço que está sendo apresentado a uma pessoa, não pode julgá-la. Cada uma traz em si o seu próprio conhecimento da vida dela, da cultura, da família, da educação. A vida é uma sala de aula e nos falta aula de ética, moral, respeito às religiões de matrizes africanas. Aula de como ser gente. Por isso, acredito que a Lei 10.639 vai nos favorecer muito se bem aplicada. Hoje temos um grupo forte de jovens que podem salvar o nosso país.