Nervos

Daniel Manzoni de Almeida*

 

“Você vai se atrasar e seu amor vai morrer lá sozinho antes de você chegar”. Ele repetia olhando para si e batendo os dedos ansiosos no vidro da porta do metrô, enquanto seu corpo sacolejava no ritmo do percurso do transporte. Saltou do vagão em velocidade, tão sem sentido e direção como vento em um dia de tempestade. Nas mãos um pedaço de papel amassado com duas frases escritas, o nome do hospital e o endereço que deveria ir. Era uma mistura de sono e desespero, tão parecida com a sensação de acordar febril de um pesadelo. Mais que isso ainda, de não acordar. Permanecia na areia movediça, tentando caminhar num solo de lama, como em uma embriaguez dos seus vinte e poucos anos. No primeiro segundo de lucidez foi orientado pelo papel e pelas placas da estação do metrô a sair rapidamente pelas escadas da estação das Clínicas. Ganhou a superfície na Cerqueira Cesar. Tinha os cabelos soltos e anárquicos, trajando roupas nada comuns praquela hora do dia mas sim pra intimidade do sono e do descanso. Parecia descompassado aos olhos de todos, olhos menos importantes que os seus naquele instante. Assim caminhou, perdido entre a multidão de sadios, enfermos, quase enfermos, possíveis enfermos, acompanhantes de enfermos, tratantes de enfermos e os desesperados pelos enfermos, na calçada que leva ao maior hospital da América Latina. “Preciso chegar ao hospital, meu amor está doente” disse Ele a primeira pessoa vestida de branco que encontrou. Uma médica ou enfermeira, sua visão turva e embaçada pela angustia não o deixava ver nada além de um nevoeiro cinzento. “Você vai se atrasar e a médica disse que ele não vai resistir. Só a bactéria resistirá.” Continuou vomitando desespero aos estranhos. “Vim do interior só para vê-lo! Ele é o meu amor!” Sem resposta, continuou tentando chegar perguntando um a um até a porta do hospital. Não foi diferente até chegar à recepção da ala de internação “Meu amor, Fernando, está internado aqui! Ele está com uma bactéria resistente e eu vim de longe só para vê-lo”, disse na recepção, esperançoso por mais informações. Mas sem sucesso, ninguém conseguiu localizar nenhum Fernando internado na ala ou em qualquer outra do hospital. “E qual seu nome?”, perguntou atenciosa a recepcionista. Recebeu seu silêncio, Ele não conseguia lembrar. “Seus documentos, por favor, senhor?” Sem qualquer resistência lhe entregou a carteira, dela a recepcionista sacou um documento de identidade que revelava como primeiro nome Fernando. “O senhor chama-se Fernando, certo?” Ele respondeu balançando a cabeça positivamente, estupefato. De dentro da carteira a recepcionista ainda tirou um papel maior, do tamanho de uma folha de sulfite com o timbre de outro hospital. O olhou com calma nos olhos, “O que faz por aqui, senhor Fernando? O senhor estava nesse hospital do papel?” “Sou”, respondeu monossilábico, com muita dificuldade de transpor aquela única palavra pela boca trêmula, “E o que faz aqui quando deveria estar lá, para se tratar?”, continuou a recepcionista. “Eu só quero salvar o meu amor”, disse Fernando tremulo enquanto despencava na cadeira mais próxima. Colocou a cabeça entre as mãos e soluçou. “Preciso voltar e não me atrasar, para salvar o meu amor! Agora ele está lá” em uma fração de segundo virou vento de novo. “Fugir de mim. Encontrar meu amor”.

 

*Daniel Manzoni de Almeida é professor Dr. da Escola de Saúde da FMU