Dossiê Maria Quitéria: uma guerreira voraz*
Maria Carolina**
Existe um apagamento de muitas heroínas brasileiras que atuaram de forma imensurável em contextos que causaram modificações na estrutura de diversas áreas profissionais que hoje, ainda assim, costumam sofrer de sinônimos como a misoginia, principalmente no âmbito acadêmico, quando se comparado a estudos de personalidades do sexo masculino.
Dentre um dos nomes pouco citados, temos a baiana Maria Quitéria de Jesus Medeiros, que fugiu de casa para ser capaz de viver realizar o seu maior sonho: alistar-se no exército brasileiro para defender seu país. Assim, seu pai, o fazendeiro Gonçalo de Almeida, a encontrou em meio ao acampamento militar, disfarçada e sob o pseudônimo do cunhado, soldado José Cordeiro de Medeiros.
Após assumir sua nova identidade, com o aceitamento de seu comandante, major José Antônio da Silva e Castro que reconheceu sua agilidade e destreza em campo, Quitéria não somente inverteu a ordem natural que se demandava em um Brasil colonial, mas também abriu o caminho para que outras mulheres pudessem se apresentar para a luta, com seus saiotes estilo highlander escocês e penachos no capacete.
O começo de um marco
Nascida em São José de Itapororocas, antiga Província da Bahia, onde hoje se encontra a cidade Feira de Santana, perdeu a mãe aos 10 anos, e ficou responsável por suas irmãs mais novas. Seu pai casou-se novamente, mas a madrasta tinha uma relação conturbada com Quitéria, que já demonstra uma independência progressista considerada ultrajante para os modelos impostos pela época. Passava muito tempo fora de casa, onde treinava o manejamento de marca de fogo e a montar cavalos, o que a fez sobressair-se nas funções de artilharia.
Muito convicto e incentivador do poderio das tropas portuguesas, o pai de Quitéria desaprovava suas ideologias e opiniões. Com a ajuda de sua irmã, Tereza Maria, utilizou o nome e uniforme de seu cunhado, e assim se aventurou na carreira militar aos seus 30 anos, tornando-se o primeiro soldado mulher do Brasil. Na mesma época, ocorria um dos grandes marcos que constituem nossa história: o 7 de setembro de 1822, quando, em São Paulo, o filho do rei português declarou a Independência do Brasil.
O Rio de Janeiro, considerada a capital do novo país, estava em êxtase, mas os portugueses reagiram em várias outras cidades e estavam dispostos a manter enclaves lusitanos. Rapidamente, controlaram Salvador. Mas os adeptos aos portugueses não conseguiram dominar o interior, e a região de Feira de Santana se tornou um dos centros da resistência pela Independência.
Maria Quitéria ficou empolgada, quando a vila recebeu a proposta por meio do Conselho Interino do Governo da Bahia de enviar homens para aderir à luta e defender seu território, pois sabia de sua valia para aquele momento. Contudo, seu pai a proibiu de pegar em armas. Foi quando ela se rebelou e foi de encontro ao seu futuro que marca nossa história.
Entrou para o regimento de artilharia, depois foi transferida para o Batalhão dos Voluntários do Príncipe. Lutou nas batalhas de Ilha de Maré, de Pituba e de Itapuã. Participou, com água na altura do peito, da batalha da foz do rio Paraguaçu, ao lado de diversas outras mulheres da Companhia Feminina, na entrada da Baía de Todos os Santos.
O futuro inexplorável
Em 2 de julho de 1823, a Bahia se tornou definitivamente parte do Brasil e a história de Quitéria foi devidamente reconhecida pelo Exército, que concedeu a ela o título de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, que recebeu no Rio de Janeiro, onde morava, das mãos do imperador. A ocasião era mais do que especial: a finalmente Independência da Bahia, que marcava o sentimento federalista emancipador de seu povo.
Dom Pedro I também lhe deu uma carta para ser entregue a seu pai, pedindo que ele a perdoasse por sua desobediência da filha. Voltou para casa, casou-se com o antigo namorado, o agricultor Gabriel Pereira de Brito. Teve uma filha, chamada Luísa Maria da Conceição. Ao ficar viúva, Quitéria mudou-se para Feira de Santana para tentar receber parte da herança deixada por seu pai, em 1834, mas desistiu por conta da burocracia e pelos inúmeros obstáculos que se impunham, deste modo optou por ir para Salvador.
Maria é hoje patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército brasileiro, e todos os estabelecimentos militares do Brasil têm um quadro com seu retrato. Contudo, até o reconhecimento de sua carreira, três décadas depois de sua morte, se encontrava desconhecida, vivendo de soldo militar, em estado avançado de cegueira e com suas lembranças da época em que realizava grandes ações em nome de seu país e ideais.
Hoje existem muitas mulheres que estão com carreira firmada no militarismo: segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, existem mais de 22 mil mulheres militares, que perfazem aproximadamente 7% do efetivo militar brasileiro. Um grande ganho , mas ainda existem muito a ser conquistado e desmistificado, para que consigamos estudar e conhecer mulheres inspiradoras como Maria Quitéria, que com sua voracidade criou um futuro mesmo enquanto se preocupava com seu presente.
*Texto produzido originalmente para a disciplina Produção de Revista no segundo semestre de 2019.
**Aluna do 7º semestre do curso de Jornalismo