Assentamento, por Pedro Martins
Pode ser um assentamento de um prédio, de um edifício, ele pode ser um assentamento de um grupo social, como até hoje o MST usa, ou ele pode ser também a força mágica que mantém um terreiro de pé.
Então eu escolhi esse nome pensando em que a população negra, apesar de todos os horrores sofridos na escravidão, ainda assentaram uma cultura, ainda assim assentaram um país.
— Rosana Paulino, 2019.
Por Pedro Martins
A fala da artista visual Rosana Paulino (2019), resume o sentido da escolha da palavra que intitula e guia este trabalho. ASSENTAMENTO, investiga a respeito dos processos de transformação, destruição e preservação dos espaços urbanos ligados à memória e à história afro-brasileira. Desenvolvo um trabalho que se refere ao trato da memória no espaço-tempo, tendo como leitura a produção escrita da fotografia que se propõe ilustrar os atravessamentos das discussões em torno da abordagem epistêmica do pensamento descolonial (KILOMBA, 2019; ROCHA, 2018; QUIJANO, 1992) entorno da memória, dando um recorte à história negra na cidade de São Paulo – de maneira indissociável. A série propõe reflexões sobre os espaços da cidade e suas rugosidades (SANTOS, 2012) em razão do tempo, articulando proposições a partir do pensamento e da prática crítica em fotografia, relacionando essas ausências com as políticas de memoricídio da herança colonial que atuam como políticas de apagamento, sobretudo os preâmbulos das relações históricas, culturais e patrimoniais, procurando no trabalho prático e teórico propor evocações e recortes em processos artísticos e críticos, contribuindo na produção acadêmica recente que se dedica ao estudo da emancipação, releitura e preservação da memória e vestígios afrodiaspórico latino-americano. A pergunta que indago na construção desta monografia é: Quais memórias urbanas são salvaguardadas? E por quê?
A partir desta pergunta, elaborei uma pesquisa que pudesse responder minimamente essa questão, e é a partir desse mapeamento que as fotografias da série passam a surgir. As fotos de cada conjunto possuem coordenadas cartográficas que dão a base das histórias retratadas. São 10 espacialidades localizadas na capital de São Paulo que tiveram suas memórias ausentes, seu espaço transformado, e sua presença soterrada pelas amarras coloniais. Através de conceitos, técnicas artísticas e poéticas, desenvolvo teias de conteúdos que possam me levar ao entendimento relevante dessas questões apresentadas.
A construção da memória parte de ações individuais e/ou coletivas (POLLAK, 1989) que evidenciam o fato de as histórias da comunidade negra serem inseparáveis da história do Brasil. Portanto, a memória é um instrumento significativo na luta por reparação histórica e justiça racial, pois são os dispositivos salvaguardados e preservados por ela que dão as respostas mais imediatas frente às violências do Estado engendradas em conceitos racistas e coloniais.
É importante enfatizar que a memória social, assim como a história e seus processos de construção, é um relevante campo de pesquisa acadêmica que intersecciona a política, o desenvolvimento cognitivo e a composição indenitária. Dito isso, minha pesquisa se torna pertinente por vir a ser mais um desdobramento na construção do debate contemporâneo referente a preservação da história negra nos territórios urbanos, realçando o fato da memória ser um conceito transversal e polissêmico (CAMILO, 2020), que serve como ferramenta de articulação emancipadora para o campo racial, político e cultural.
Em ASSENTAMENTO, o conceito se torna matéria para a construção de pensamentos, e proposições intensas, que almejam a possibilidade do infinito. Os meios e completos permanecem constantes como esquemas e hipóteses de trabalho. Então, as narrativas começam a tomar forma, e passam a investigar, interpretar e captar situações particulares.
De antemão, devo ressaltar que no processo de pesquisa estruturou-se um pensamento que evidencia o fato que houve uma invasão europeia das Américas, não apenas com forças bélicas, mas também com a imposição das artes, de processos religiosos, demarcações geográficas e a docilização intelectual, fato importante para entendermos e pensarmos em como se cria e se dá a razão para os processos de escolhas de uma narrativa e a evidência de um espaço protagonista (MALUNGUINHO, 2020) – bem como pensar em como se dá os processos de apagamento das narrativas negras por meio de políticas do esquecimento orquestradas pela colonialidade e os poderes imperialistas de interdição ao saber, que tentam sintetizar suas necessidades de comunicação construída inerente a um projeto de poder que articula o memoricídio (JONES, 2010) e as estruturas racistas – apagando, negligenciando e violentando aqueles que propuseram outras em relação às histórias centrais. O objetivo da pesquisa é perpassar por esses territórios evocando suas memórias e através da poética artística escrita e fotográfica, evidenciar as condições de tais apagamentos históricos relacionados às territorialidades afro-brasileiras, convidando o observador dos trabalhos a tecer em conjunto pensamentos que constroem uma manta de saberes descoloniais em torno dos territórios.
Os trabalhos são elaboradas por indagações que as orientam, como as elaborações teóricas do espaço, desenvolvidas pelo geógrafo, escritor e professor Milton Santos (Brotas de Macaúbas, 1926 – São Paulo, 2001), as ideia das transformações físicas e simbólicas da cidade sentidas pelo ato de caminhar do autor italiano Francesco Careri (Roma, 1966), as críticas ao memoricídio das populações negras no Brasil, desenvolvidas pelo pesquisador Leandro Missiato (Rio de Janeiro, 19?) e os apontamentos referentes à arte contemporânea como dissolução e escrita da memória de pensadores e pesquisadores diversos como a escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba (Lisboa, 1968) e o semiólogo e professor argentino Walter Mignolo (Corral de Bustos, 1941). Já nas elaborações práticas, pesquiso técnicas e possibilidades nos trabalhos de artistas como Chōtoku Tanaka (Tóquio, 1947), Daido Moriyama (Osaka, 1938), Eustáquio Neves (Juatuba, 1955), Luiz Paulo Lima (Porto Alegre, 1960), Peter Magubane (Johanesburgo, 1932), Rosana Paulino (São Paulo, 1967) Santu Mofokeng (Soweto, 1956 – 2020), Shōmei Tomatsu (Nagoia, 1930 – Naha, 2012) e os cineastas Arthur Omar (Poços de Caldas, 1948) e Jean-Luc Godard (7.º arrondissement de Paris, 1930).
Veja as fotos abaixo: