A poética dos cinco elementos em Dunkirk

Sílvio Anaz*

Em Dunkirk, filme recém-lançado em DVD e Blu-Ray, Christopher Nolan ultrapassa o convencional ao colocar terra, ar, água, fogo e o tempo como protagonistas em narrativa sobre a guerra. Ao mostrar a retirada de centenas de milhares de soldados aliados cercados pelos nazistas nas praias do norte da França, no início da Segunda Guerra Mundial, o filme vai além dos mandamentos das narrativas mainstream e relega os personagens ao segundo plano.

Ir além do convencional não é novidade na cinematografia de Nolan. Ele faz um cinema versátil, ousado e bem-sucedido ao mesmo tempo. Em Hollywood, está no panteão dos dez diretores mais lucrativos do cinema mundial. Como roteirista desafia as fórmulas tradicionais e o discurso anti-hollywoodiano de parte da crítica ao mostrar a possibilidade da audiência se engajar em imaginários complexos em produções blockbusters. Exemplos disso são: A Origem (2010), ao mesclar o onírico e o real a ponto de ser difícil distingui-los, e Interestelar (2014), que traz universos paralelos e outros elementos da teoria da relatividade e da física quântica.

Mesmo quando adota estruturas narrativas convencionais, como na trilogia O Cavaleiro das Trevas (2005, 2008, 2012), o diretor dá profundidade inédita às adaptações cinematográficas dos super-heróis dos quadrinhos.

Em Dunkirk, ele realiza uma obra poética sobre uma das mais terríveis e intrínsecas invenções humanas: a guerra. A estética construída por imagens em Imax, sons vívidos de tiros e explosões e minimalismo dos diálogos fundamenta-se em uma estrutura que enfatiza o que filósofos como Aristóteles consideram os quatro elementos essenciais do planeta: terra, água, ar e fogo.

Ainda que baseado em um fato histórico, o mundo construído por Nolan dá a esses elementos um protagonismo maior que o dos humanos. Sinal disso é que é difícil identificar atores principais em Dunkirk. Mesmo nomes mais estelares, como Kenneth Branagh, Tom Hardy e Cillian Murphy, são coadjuvantes. São os espaços em que se desenvolvem as ações – a praia e o molhe (terra), o mar (água) e os céus (ar) que separam a França da Grã-Bretanha – os protagonistas da narrativa. Além do fogo, que está em todos os lugares: após os bombardeios em terra, nos combates aéreos e, até mesmo no mar, provocado pelo vazamento de óleo de navios atacados.

O tempo, o quinto elemento na poética de Nolan sobre a guerra, se fragmenta em três linhas temporais distintas usadas para contar a história. As diferentes temporalidades apresentam-se de forma imbricada na narrativa e sem prévios avisos aos espectadores, a não ser nas primeiras cenas quando se anuncia que os fatos em terra acontecem durante uma semana, no mar durante um dia e no ar durante uma hora. Aqui aparecem as principais relações dos elementos naturais com a temporalidade: a terra, o mais resistente deles, impõe uma duração maior ao tempo; a água, o elemento fluido, impõe ao tempo uma menor resistência que a terra; o ar é o menos resistente; e o fogo é instantâneo.

A forma como Nolan usa os elementos essenciais e o tempo em Dunkirk remete ao pensamento do filósofo Gastón Bachelard (1884-1962). Os quatro elementos são mais do que eixos para as investigações bachelardianas e operam como grandes arquétipos, matrizes produtores de ideias e imagens.

Em Dunkirk, terra, água, ar e fogo retomam a função arquetípica e geram imagens que ora antagonizam, ora atenuam o tempo que flui inexoravelmente, em diferentes velocidades, e que não para de anunciar a proximidade da morte para os soldados ilhados. São as imagens simbólicas do humano frente aos quatro elementos que compõem o mundo, na perspectiva aristotélica, as mais relevantes no filme. Por isso, o inimigo e suas armas pouco aparecem. Os contextos familiares ou políticos, em que os personagens se inserem, também estão praticamente ausentes da narrativa, afinal, tais circunstâncias tornam-se irrelevantes frente ao papel da geografia em que ocorrem as batalhas e o resgate.

Ainda que o heroísmo individual esteja presente em personagens semi-anônimos – como nas incursões salvadoras de Farrier (Tom Hardy), piloto da Força Aérea Real, em seu Spitfire –, triunfa na narrativa um heroísmo coletivo. A “vitória” – se assim pode-se chamar uma fuga em massa – é a do esforço partilhado na interação com a água, o ar, a terra, o fogo e o tempo para levar os soldados de volta para casa – a casa que, na fenomenologia de Bachelard, representa a topografia da alma humana.

Alguns críticos torcem o nariz para a ausência de um aprofundamento psicológico dos personagens e para a falta de uma maior contextualização histórica e social no roteiro enxuto, com menos de 80 páginas. Mas, Nolan constrói uma obra poética em que o protagonismo não é dos humanos. Algo que o grande público percebeu ao fazer do filme uma das maiores bilheterias mundiais de 2017.

* Doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP, com pós-doutorado em meios e processos audiovisuais na Universidade de São Paulo. Foi pesquisador-visitante na School of the Arts, Performance & Design da York University.