“A Interculturalidade pode integrar povos e etnias”, desafia geógrafo
Por Isadora Camargo
Ondas separatistas, racismo, homofobia, preconceitos contra minorias são alguns dos grandes problemas geopolíticos do mundo contemporâneo, que, em parte, podem ser causados por meio de reações discriminatórias em massa ou por falta de políticas governamentais de integração social e cultural.
Assim, eis o desafio de oferecer protagonismo aos diferentes povos e etnias. Mas como? De acordo com o geógrafo e professor mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), Rodolfo Chagas, a “interculturalidade é uma meta ideal dos Estados-Nação”, que promove combinação entre culturas diferentes por assimilação respeitosa dentro da estrutura social, valorizando o papel das minorias.
O professor defende que o conceito de interculturalidade pode ser utópico, já que integração representa um mundo perfeito, mas, ainda assim, pode-se sonhar com menores práticas discriminatórias em sociedade com valorização e participação das camadas minoritárias.
Para ele “a interculturalidade é essencial para disseminar a tolerância, o respeito ao outro, o respeito as diferenças, combater o etnocentrismo, a xenofobia, a misoginia, o racismo e todos os preconceitos, por isso seria uma utopia, já que representaria um mundo perfeito. Mas é um avanço que prega a integração das diferenças em um mundo divido entre minorias e maiorias para que haja diminuição das práticas descriminatórias”.
Dumela: O que é interculturalidade?
Rodolfo Chagas: A interculturalidade seria o nível mais avançado da integração das diferenças. Por exemplo, quando se fala em política inclusiva para grupos que dependem ou demandam mudanças espaciais, como deficientes físicos que precisam, de fato, serem incluídos, já que o mundo não foi concebido para este tipo de diferença, há criação de políticas para essas pessoas como o nivelamento de uma calçada, placas em braile nos elevadores etc.
Mas, imagina o absurdo que seria criar uma política inclusiva para índio ou para negro? É perverso, pois estaríamos pressupondo que eles são excluídos e que haverá uma imposição para que vivam como a maioria e isso não é integração, onde as minorias também têm contribuições.
Embora isso seja utópico e a maioria acaba ditando parâmetros e princípios de um povo, a interculturalidade pode reconhecer e valorizar as diferenças de minorias e grupos que não são perfeitamente designados dentro do que entendemos como cultura majoritária de um país. A maioria geralmente é uma, as minorias são centenas, milhares.
D: Qual a diferença entre multiculturalidade e interculturalidade?
RG: O multiculturalismo é o reconhecimento de que existem diferenças étnicas e culturais em um determinado território. Via de regra os países são multiculturais porque os limites étnicos das nações não coincidem com os limites políticos. Nos países continentais, por exemplo, existem multiplicidades que pode ir de duas a centenas de etnias e, portanto, o multiculturalismo é o reconhecimento destas diferenças.
A grande questão é que o multiculturalismo, dependendo da forma que ele é articulado e estruturado dentro de um Estado-Nação, pode sobrepor uma determinada cultura sob as demais. Em tese, os diferentes podem não se integrar, ainda que possam se reconhecer e isso depende muito da forma como o multiculturalismo é aplicado em um país.
O que se fala muito é que o multiculturalismo pode fomentar a fragmentação social, como se criasse caixinhas de quem sou eu, quem é o outro e a que grupo pertence. Já a interculturalidade é um passo a frente do multiculturalismo, que prega a integração das diferenças. É como se um chinês vivesse no Brasil e, antes de ser julgado como porco porque cospe no chão, teria a possibilidade de compreender que este comportamento não funciona no Brasil de tal forma que não precisasse se transformar em uma pessoa diferente, mas se adaptar.
D: Então são conceitos antagônicos?
RG: Interculturalidade e multiculturalismo não são necessariamente antagônicos, depende da forma como eles são aplicados. A interculturalidade é uma evolução do multiculturalismo. Em alguns momentos podem ser antagônicos, por exemplo, ao pensarmos em um país que reconhece as diferenças, mas não as integra e prega a segmentação dos povos, favorecendo a fragmentação social, então, a interculturalidade seria um conceito antagônico. Mas também pode ser complementar, por isso é difícil de definir.
É preciso muito cuidado quando se fala em política inclusiva para gays, mulheres, negros, índios porque se pode pensar que eles não estão enquadrados no que seria ideal, no que já está incluído. Portanto, os conceitos nem sempre são antagônicos e nem sempre complementares.
D: Qual a importância de se entender e aplicar a interculturalidade no contexto brasileiro?
RG: A interculturalidade é importante em qualquer contexto. É como se todas as culturas, todos os povos, etnias e minorias tivessem algum tipo de protagonismo, podendo contribuir para construção daquela sociedade.
“Se não fizermos nada vamos perpetuar essas práticas muito rapidamente até que elas se consolidem. Se não falar de interculturalidade e integração das minorias, muito rapidamente as maiorias vão passar como um furacão sobre as minorias. Se começarmos falar, no futuro pode haver uma integração de fato.”
D:Quais as principais pesquisas sobre interculturalidade?
RG: A interculturalidade é um conceito muito novo. Existe um autor chamado Milton Benett, criador da ‘Teoria do Iceberg’, que entende a ponta do iceberg como o local onde está a nossa percepção imediata de um estrangeiro. Então, quando um estrangeiro vem para o Brasil, o que ele considera ser brasileiro? Nós temos a língua portuguesa, as noções de que o Brasil é a terra do futebol e do samba, temos a Bossa Nova, rimos alto, entre outras características e percepções que são imediatas para quem não é daqui.
E o que está por debaixo da água no iceberg? Seriam nossas noções de justiça, regras de limpeza, noções de felicidade, regras de beleza, relações com animais, com o ambiente, relações patrão e empregado. Questões que o estrangeiro só vai entender depois de um tempo de convivência com o brasileiro. Este convívio é facilitado quando existe a vontade da maioria em integrar com a minoria, caso contrário, ele pode demorar e gerar muito mais preconceito.
D: O Brasil é um país que respeita a diversidade cultural?
RG: Por natureza somos um país formado pela diversidade, mas é difícil falar que se respeita toda e qualquer diversidade. Uma mulher tem a opção de casar sem ser de branco? Invariavelmente as pessoas não vão fazer uma reflexão sobre ela? As pessoas podem mencionar que ela está linda, que ela é ousada por causar de outra cor, mas como branco representa virgindade, aí estará um julgamento do que aquela noiva é ou não é.
São Paulo é um bom exemplo para entender a diversidade. Será que em toda a cidade a gente respeita as diferenças como respeitamos na Avenida Paulista? Acho que não. Porque a Paulista é um terreno libertário, progressista, um terreno de respeito, então lá um gay não pode tomar uma ‘lampadada’ na cabeça. Mas quantos gays levam tiro fora da Paulista, mas isso não é notícia, não é tão importante. Por isso, não dá para dizer que a gente não respeita, porque estaríamos traindo nossas origens, mas somos muito desonestos como as nossas diferenças.
Podemos elencar vários patrimônios tombados no Brasil, mas quantos destes estariam ligados à cultura negra ou indígena? A maior parte deles está associada à cultura branca. Posso reconhecer que eles são importantes, mas esta valorização é muito estereotipada.
D: E qual o impacto dessas escolhas para o futuro?
RG: O impacto é a disseminação das práticas discriminatórias, etnocêntricas, misógenas, homofóbicas. Se não fizermos nada vamos perpetuar essas práticas muito rapidamente até que elas se consolidem. Se não falar de interculturalidade e integração das minorias, muito rapidamente as maiorias vão passar como um furacão sobre as minorias. Se começarmos falar, no futuro pode haver uma integração de fato.
D: O que fazer para tentar lidar com o problema de integração?
RG: Educação, incentivo à cultura e à cidadania. Não dá para responsabilizar somente o Estado por disseminar as práticas de integração, isso deve partir do indivíduo, mas seria muito interessante se o Estado pudesse criar mecanismos dentro do ensino para que houvesse integração. Mas o Estado tem um revés contra ele que é o fato de ser responsável por definir o que é ser um cidadão pertencente àquele país, então, de repente, pode se definir na constituição o que é ser um brasileiro, mas quando se começa a fazer concessões para integração das minorias, é como se estivesse traindo a ideia inicial do que é ser um brasileiro, o que denota a dificuldade do Estado em ser o único ator que pode fomentar a integração.
Outra questão é o incentivo a políticas interculturais, que não são muito aparentes. Apesar de reconhecer essas diferenças, não se propõe a integração, lado perverso da questão.