Cem anos de Samba e de Geraldo Pereira
Adriana Braga*
Em novembro de 1916, o compositor Donga – Ernesto dos Santos – registrou na Biblioteca Nacional a composição Pelo Telefone. No ano seguinte, a música foi gravada pelo cantor Baiano e a Banda da Casa Edson. A autoria de Pelo Telefone é sempre muito discutida. Vários pesquisadores afirmam que se trata de uma criação coletiva da qual Donga fez parte. Polêmicas à parte, Pelo Telefone, entrou para a história como o primeiro samba gravado em disco.
De origem mestiça, o samba é uma mistura dos ritmos africanos e brasileiros com as melodias e harmonias da música europeia. Vinícius de Moraes afirmou que “o samba nasceu lá na Bahia” (Samba da Benção, 1967), e o samba carioca, realmente tem origem no recôncavo baiano. De acordo com José Ramos Tinhorão, grande pesquisador das origens da música popular brasileira, a presença numerosa de negros baianos no Rio de Janeiro (que chegaram com o fim da escravidão e da Guerra de Canudos) foi um dos fatores determinantes para o surgimento do samba carioca, o samba urbano conhecido hoje em todo o país.
Se em 1917, o samba, como gênero musical, dava os seus primeiros passos, um pouco mais de dez anos depois, nos anos 1930, ele já marcava a primeira grande fase da música popular brasileira. A expansão das emissoras de rádio no Brasil contribuiu muito para a divulgação do samba e de seus compositores. Essa primeira fase da época de ouro da música popular brasileira coincide com a época de ouro do rádio nacional. Para o rádio, esse momento áureo acaba no início da década de 1950, com a chegada da televisão ao Brasil. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello datam 1945 – o fim da Segunda Guerra e o fim da ditadura de Getúlio Vargas – como o término do primeiro grande período da música popular.
O compositor Geraldo Pereira, autor de sambas como Falsa Baiana, Bolinha de Papel e Sem Compromisso é um dos sambistas dessa primeira fase da música brasileira. Um de seus primeiros sucessos data de 1940, Acertei no Milhar, escrita em parceria com Wilson Batista, e gravada por Moreira da Silva, o criador do samba de breque.
Geraldo Pereira nasceu há 100 anos, em 23 de abril de 1918, em Juiz de Fora, mas foi menino para o Rio de Janeiro, morar com a mãe e o irmão no Morro do Santo Antônio, que integra a região do Morro da Mangueira. Ainda adolescente começou a compor e fez amizade com alguns sambistas do morro, como Cartola. Sua primeira música gravada foi Se você sair chorando (1939), escrita em parceira com Nelson Teixeira e lançada em disco pela Odeon, pelo cantor Roberto Paiva. Ciro Monteiro era um de seus intérpretes mais fiéis e principal divulgador de suas composições. Foi ele quem gravou os grandes sucessos Falsa Baiana (1944) e Escurinho (1954) – um dos últimos sambas de Geraldo Pereira, que morreu em 8 de maio de 1955, aos 37 anos.
As composições de Geraldo Pereira como Falsa Baiana, Bolinha de Papel e Escurinha possuem uma batida diferente, que ganhou o nome de samba sincopado, ou samba do “telecoteco”. Elas têm melodias elaboradas, ritmo quebrado e a temática de suas letras falam muito da realidade vivida pelo autor, nos morros cariocas e na boemia do Rio de Janeiro. Como em Cabritada mal sucedida (1953, com e Wilton Wanderley):
“Bento fez anos,
E para almoçar me convidou,
Me disse que ia matar um cabrito,
Onde tem cabrito eu tou,
E quando o ‘Comes e Bebe’ começou,
No melhor da cabritada,
A Polícia e o dono do bicho chegou. […]”
Ou ainda em Polícia no Morro (1952, com Arnaldo Passos)
“Polícia tá no morro
Atrás do cabrito do doutor
Que o Bento matou e fez tambor
O comissário mandou dizer
Que a escola só sai
Se o cabrito aparecer”.
O amor e a figura feminina também estão presentes no samba de Geraldo Pereira. Escurinha, por exemplo, foi escrita para a pastora Isabel:
“Escurinha, tu tens que ser minha de qualquer maneira
Te dou meu boteco, te dou meu barraco
Que eu tenho no morro de Mangueira
Comigo não há embaraço
Vem que eu te faço meu amor
A rainha da escola de samba
Que o teu nego é diretor
Quatro paredes de barro, telhado de zinco
Assoalho no chão, só tu escurinha
É quem está faltando no meu barracão”
Há ainda a mulher que espera com Resignação (1943, com Arnô Provenzano) que o marido lhe seja fiel, quando dança com outras mulheres.
“Quem é que lava a roupa
Pra você dançar?
Quem é que não marca hora
Para você chegar?
Quem é que sofre com resignação
Quando você traz a gola do terno
Suja de batom?
Mas ontem você faltou
Com o respeito para mim
Trazendo o lenço manchado de carmim.”
E e a mulher de Sem Compromisso (1944, com Nelson Trigueiro), que na hora de dançar troca o seu acompanhante por outro par no salão.
“Você só dança com ele
E diz que é sem compromisso
É bom acabar com isso
Não sou nenhum Pai-João
Quem trouxe você fui eu
Não faça papel de louca
Prá não haver bate-boca dentro do salão
Quando toca um samba
E eu lhe tiro pra dançar
Você me diz: Não, eu agora tenho par
E sai dançando com ele, alegre e feliz
Quando para o samba
Bate palma e pede bis”.
Para o grande público, talvez, Geraldo Pereira não seja um nome familiar. Mas suas composições gravadas por nomes como João Gilberto, Chico Buarque e Zeca Pagodinho são conhecidas e figuram entre os grandes sambas dos anos 1940 e 50.
Viva o samba e Viva Geraldo Pereira!
Ouça as músicas:
Acertei no Milhar (Geraldo Pereira e Wilson Batista): https://www.youtube.com/watch?v=kaqJqzCs3i8
Cabritada mal sucedida (Geraldo Pereira e Wilton Wanderley): https://www.youtube.com/watch?v=jbFZKzPb6io
Polícia no Morro (Geraldo Pereira e Arnaldo Passos): https://www.youtube.com/watch?v=uh-uG9lq340
Falsa baiana (Geraldo Pereira): https://www.youtube.com/watch?v=aKhPbVlw1UY
Bolinha de Papel (Geraldo Pereira): https://www.youtube.com/watch?v=lQftVG5uvJg
Escurinho (Geraldo Pereira): https://www.youtube.com/watch?v=RDrMEGyQ3p8
Escurinha (Geraldo Pereira e Arnaldo Passos): https://www.youtube.com/watch?v=9jXyCqb-460
Resignação (Geraldo Pereira e Arnô Provenzano): https://www.youtube.com/watch?v=VU6OTn4FvSM
Pisei num despacho (Geraldo Pereira e Elpídio Viana): https://www.youtube.com/watch?v=AAkBdiMEYrU
Sem Compromisso (Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro): https://www.youtube.com/watch?v=dq-Mis8m9xE
* Adriana Braga [de Almeida Baptista], formada em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP – 1989) e mestre Ciências da Comunicação pela ECA-USP, com a dissertação “Rádio e música popular brasileira: estudo crítico das inter-relações entre o rádio FM e a música brasileira no início do século XXI, em São Paulo” (2003). É produtora da Cultura FM de São Paulo há mais de 20 anos e ministra aulas no curso de RTV do FIAMFAAM Centro Universitário desde 2012. Atua principalmente com os temas: música popular brasileira, rádio e história do rádio e TV.