A Forma da Água e três formas de lidar com o diferente
Sílvio Anaz*
A Forma da Água, escrito e dirigido por Guillermo Del Toro, é uma das produções mais premiadas de 2018, o que inclui a conquista do Oscar de melhor filme. A obra acaba de ser lançada em DVD e Blu Ray, no Brasil.
Del Toro concebe o filme como uma narrativa sobre empatia e aceitação do outro e a necessidade de entender o diferente. Essa ideia se materializa principalmente na protagonista Elisa (Sally Hawkins). Ela é mulher e muda, e tem como únicos amigos uma colega de trabalho negra, um vizinho gay e um ser anfíbio, que se tornará seu amante.
Mas, um aspecto que, apesar de relevante, tem sido pouco discutido a respeito do filme é a apresentação que Del Toro faz de três formas distintas que o ser humano tem para se relacionar com o desconhecido.
Ontológica e temporalmente, o desconhecido é fonte das primeiras experiências de medo e angústia do ser humano. A escuridão, a ignorância sobre a origem e a manifestação de fenômenos naturais e a ameaça de criaturas incomuns são algumas das causas dos temores iniciais humanos ante o obscuro e o estranho. Nesse sentido, o diferente, o outro, o estrangeiro também representa o desconhecido. Em A Forma da Água, cabe ao ser anfíbio capturado ocupar esse lugar do sombrio e enigmático.
Na fábula que constrói, Del Toro sintetiza três formas distintas que o ser humano desenvolveu para lidar com o desconhecido e o temor que tem diante dele: a violência, a ciência e o amor (ou empatia). Essas maneiras de conhecer, apesar de singulares, têm fronteiras tênues entre elas, misturando-se muitas vezes.
No filme, a relação estabelecida entre o coronel Richard Strickland (Michael Shannon) e a Criatura (Doug Jones) simboliza a forma violenta da reação humana ante o desconhecido ou o diferente. Tal relação sustenta-se na ideia de que o processo de conhecer aquilo que é diferente ou obscuro deve ser feito com o objetivo de dominação do outro e da separação, do isolamento dele. Assim, cabe aos militares, com a ajuda dos cientistas, descobrir os segredos da Criatura, ainda que para isso seja preciso fazer testes, exames e intervenções que a torturem e, até mesmo, a matem. A Criatura é vista o tempo todo como uma ameaça.
A ciência, assim, é colocada por Del Toro como um instrumental a serviço de diferentes interesses militares e políticos. Não por acaso, o cientista que chefia a equipe que estuda a Criatura, o Dr. Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), é, na verdade, Dimitri Mosenkov, um espião russo. A ciência, nessa perspectiva, aproxima-se da visão positivista dos militares, de busca pelo conhecimento visando simplesmente à dominação das forças naturais ou desconhecidas, e também a busca por algo que lhes deem vantagem em um contexto em que prevalece a Guerra Fria.
Há, no entanto, ao longo da narrativa um deslocamento no papel do cientista. Ante à ameaça da morte da Criatura por conta do desejo dos militares, a atitude científica desliza para a posição de salvar o ser anfíbio de qualquer maneira. Mesmo que para Hoffstetler/Mosenkov isso signifique a traição de seus chefes, tanto americanos como russos, e, consequentemente, lhe custe a vida.
Para salvar a Criatura, que não se mostra como nenhuma ameaça aos humanos, o cientista se torna um aliado da protagonista Elisa. Ela é faxineira nas instalações militares na qual está o laboratório em que o ser anfíbio é secretamente mantido e submetido a experimentos. Desde os primeiros contatos com a Criatura, ela, uma mulher solitária e muda, desenvolve uma empatia com aquele ser estranho e diferente. Com a ajuda de Giles (Richard Jenkins), o vizinho gay, e Zelda Fuller (Octavia Spencer), a colega de trabalho negra, ela planeja uma forma de tirar a Criatura daquelas instalações. Plano que conta com a ajuda de última hora do cientista.
A evidente identificação que Elisa estabelece com a Criatura é a mesma estabelecida entre ela, Giles e Zelda. Afinal, todos representam o diferente ante o padrão social prevalecente na sociedade norte-americana, em meados do século 20. Identificação que no filme se materializa no pacto de amor e risco que assumem.
Em A Forma da Água, Del Toro enfatiza a empatia como a forma mais nobre de se lidar com o outro, com o diferente. Hábil, ele faz isso desenvolvendo os personagens chave nessas três perspectivas – Strickland/violência, Hoffstetler/ciência e Elisa/amor – de forma arquetípica, indo muito além dos estereótipos.
* Doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP, com pós-doutorado em meios e processos audiovisuais na Universidade de São Paulo. Foi pesquisador-visitante na School of the Arts, Performance & Design da York University.